30.11.17

Sobre a morte...


Fazer medicina é ter uma relação muito próxima com a morte. Começamos o curso vendo cadáveres. A empolgação das aulas práticas muitas vezes nos faz esquecer que houve uma vida antes daquela peça. O próprio termo "peça" para se referir a uma parte do corpo de uma pessoa já reflete uma certa desumanização. Muitas vezes eu me dava conta de que aquele órgão foi uma pessoa quando via as mãos e os pés. Muito mais que o rosto deformado, acinzentado e inchado de formol. 

Então começamos a frequentar a Patologia. Ali a morte nos é ainda mais próxima. Vez ou outra eu estava lá naquela salinha pequena, vendo peças doentes, sejam de cirurgias ou necropsia, e chegava um corpo. Um paciente que havia acabado de deixar esta vida. Era levado por um funcionário do hospital, colocado numa geladeira enorme e então virava ficha. 

Outra experiência mórbida é olhar prontuários. Ali anexo um atestado de óbito, um carimbo num papel. E a vida se resume a se tornar um documento num arquivo de hospital. 

Passam-se os anos e começamos a ter contato com os pacientes. Conversar com eles, tomar seu pulso, vê-lo por dentro: suas dores, aflições, e na maioria das vezes no sentido literal, com radiografias e tomografias. O mais íntimo acesso do ser humano. Presenciamos procedimentos invasivos, os vemos seminus, indefesos numa cama de hospital enquanto aprendemos neles para aplicar em outros. O inevitável ciclo do aprendizado. E depois temos a notícia que morreram. 

Uma senhora particularmente me deixou incomodada e bastante sensibilizada com essa situação. Eu colhi nela uma gasometria arterial. Procedimento delicado. Neste caso, muito difícil pois seu braço estava bastante edemaciado. É um exame doloroso, incômodo e invasivo. E essa senhora, que estava num estado de "coma vigil", no qual sentia a dor, abria os olhos e não podia se comunicar, sofreu bastante para ter a sua gasometria coletada, por mim que nunca havia realizado o procedimento. E para ter uma sonda passada por seu nariz, chegando ao seu estômago para que pudesse se alimentar. No dia seguinte, ela faleceu. Estava muito grave. Mas ficou em mim uma sensação de culpa. Eu toquei nela. Invadi suas artérias. É triste saber que pessoas com quem você conversou e aprendeu falecem. 

Em 3 anos não ficou mais fácil nem mais natural lidar com a morte. E percebi isso quando tive contato com ela longe do hospital. Estava no ônibus voltando para casa. Na faixa contrária, carros da perícia e um outro ônibus parado. Acidente? Batida? Assalto? O meu ônibus anda mais alguns metros e eis que vejo bem ao lado da minha janela um par de pés descorados 4 cruzes, em decúbito dorsal, aparecendo por baixo de um cobertor prateado. E a morte está ali, ao lado. Sem SAMU, sem as intervenções homéricas das séries de TV. Apenas um corpo solitário estendido no chão.


Créditos da imagem:
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2 comentários:

  1. UAU! Juro que me falta palavras perante a este texto.
    Parar para pensar sobre a morte é triste, mas, realmente presenciá-las constantemente como um médico deve ser tão surreal (não consigo palavras para descrever) e saber que aquilo é uma "peça" um estudo ou uma ficha é estranho por ter que ser normal.
    Boa sorte com a medicina e que tenha forças para superar o que tiver que superar, mesmo que seja a morte um paciente.
    Adorei mesmo o texto. Parabéns!
    Magia é Sonhar

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    Respostas
    1. Muito obrigada! Sim, realmente é difícil, e creio que a melhor saída é nunca deixar de se sensibilizar...
      Beijos, seja bem vinda a bordo!

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Ilustração por Wokumy • Layout por